1 de março de 2018

Literatura caseira

Assim como a comida caseira não tem compromisso com aparência e sofisticação, senão com o sabor, também minha incursão literária não priorizava estilo, apenas o conteúdo.

Deu-se que meu amigo Mario Castelar mudou-se para São Paulo, alguns meses antes de eu também ir viver na capital paulista.

Sem internet e com ligações telefônicas caras, trocávamos cartas. Falávamos de tudo, inclusive literatura.

Um belo dia propôs escrevermos a quatro mãos. Não lembro porque coube-me escrever as primeiras páginas. Já antecipo que o livro não ultrapassou o primeiro capítulo e sequer chegou a ter um título definido.

Um trecho, melhor, uma frase do livro caiu tão no agrado do Castelar que ao longo dos anos seguintes, já abandonado o projeto, vez ou outra ele referia a história do coleiro.

Coleiro como deveria sempre estar, solto na natureza
O trecho era pouco mais ou menos assim, já que os originais se perderam com o passar do tempo e sucessivas mudanças dele e minhas.

"Na varanda, pendurada em um gancho, a gaiola com o coleiro-do-brejo que era uma de suas paixões, já enjeitara trinta contos de reis nele".

Ele achou graça do personagem enjeitar trinta contos.

O personagem, dono do coleiro, morava no bairro do Grajaú, no Rio de Janeiro. Era o tipo de pessoa simples, que gostava de jogar damas com os vizinhos, sentado diante de sua casa.

Pela manhã ia à padaria comprar o pão, trajando calça de passeio, mas com o paletó de pijama. E chinelo.

Bem, como se vê, os homens da zona norte ainda usavam pijama. E iam comprar o pão na padaria da esquina, aproveitando para comprar os indefectíveis cigarros.

À noite assistia ao programa do Chacrinha. Aos domingos tomava uma cervejinha com um amigo de longa data. E discutiam futebol.

Este personagem seria o pai da protagonista feminina da história. Pai severo, embora amoroso, trazia a filha debaixo de absoluto controle.

Bem, como antecipei o livro não foi adiante. A razão principal foi que a mocinha ficcional de repente ganhou vida. Ele começou a namorar uma estudante de comunicação social e estava na fase de muita paixão. Ela assumiu o papel.

Impossível para mim criar diálogos, com dúvidas e certezas de alguém que, para ele, era de carne e osso. O nome era Francisca e seria chamada carinhosamente de Kika.

Anos depois casou-se com Kika e com ela teve dois filhos.

Castelar faleceu em 26 de julho de 2014, aos 71 anos de idade.

Mário Castelar, o melhor de meus melhores amigos

3 comentários:

Calfilho disse...

Carrano: eu também, principalmente quando vivia minha terceira década de vida,tive alguns livros ou, melhor,algumas ideias interrompidas,que não consegui colocar no papel. Escrevi alguns contos, breves narrativas, que não passavam de algumas poucas páginas. Só depois da aposentadoria, quando não tinha mais a obrigação diária do trabalho normal, é que as ideias se materializaram em alguns pequenos livros. Escrever não é fácil, a preguiça toma conta da gente, também o desânimo. Mas, para mim, continua sendo uma apaixonante aventura. Logo eu, que estava destinado a ser médico...

Jorge Carrano disse...

Eu estava destinado a ser militar ... no entanto a discromatopsia me impediu.

Na vida civil minhas opções eram advocacia ou jornalismo.

Riv4 disse...

Eu e meu irmão Freddy, logo no início da internet, iniciamos uma troca de emails sobre a louca aventura de uma formiga chamada Anette, que se transformou na verdade na nossa autobiografia "a 4 mãos" (ou uma de cada um de nós).

Paramos de escrever porque chegamos a um ponto em que a história começou a, digamos, incomodar .... rsrsrs.

Mas o produto final está maravilhoso, com mais de 500 páginas. Infelizmente quem ler não vai entender nada ... pelo menos é o que sempre acreditamos, quando estávamos escrevendo.

Engraçado tudo isso, porque lendo a autobiografia do Pete Townshend, guitarrista da banda de rock THE WHO, vejo que simplesmente todas as letras das músicas e personagens dos seus trabalhos são sobre ....ELE !! Transformado em figuras medievais, angelicais, extra terrenas, atuais também, transcrevendo sempre suas agonias e raras alegrias (é uma pessoa muito depressiva), regadas a muito álcool e cocaína.

Aliás, esse um ponto que muitos não gostam de conversar. Haja criatividade com a utilização de drogas no meio artístico.
Basta observar algumas obras primas (harmonia e letras) de Lennon, Townshend, Pink Floyd, Hendrix e tantos outros, no auge dos anos 60, quando todos, simplesmente todos eram usuários de diversos tipos de drogas.
E os temas eram naturalmente AMOR (Flower Power) e GUERRA ( ainda sob os efeitos devastadores nas familias com os horrores da WWII e do Vietnam).

PS: torci muito para o mengaummm ontem ....